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MERCEDES?

A MINHA CAIXINHA DE NATAL


 Corria o ano de 1965 e estávamos no início de dezembro. Todas as manhãs, uma criança de 8 anos acordava com uma motivação e excitação diferente do resto do ano. A partir desses dias e até que acontecesse aquilo porque tanto ansiava, não havia medo por não ter estudado bem a lição, não havia embaraço por não ter feito os trabalhos de casa. Afinal não havia nada que a fizesse não querer ir para a escola, e aí permanecer expectante, dia após dia e até que “aquilo” acontecesse.

Não havia dia marcado, e só a certeza de que por aqueles dias “eles” chegariam à sua escola, no Posto Santo, de onde era natural e vivia a criança que era eu.

A professora, nesses dias, não esperava que lhe prestassem atenção, pois centravam-na nos sons que vinham da rua, até que chegava aquele em que ouviam o roncar de um motor diferente aproximar-se e desligar-se frente à escola. Nesse instante não havia qualquer dúvida. Eram mesmo “eles”. 

A alegria apoderava-se de todos, e então “eles” entravam. Normalmente dois ou três, fardados de azul, carregando sacos enormes, de onde saiam caixas e mais caixas, todas do mesmo tamanho e com conteúdo idêntico, que entregavam uma a uma a cada criança da escola. Falavam uma língua que não entendíamos, mas isso não tinha importância pois não impedia que deixassem a sua oferta.

Logo que se despediam, a professora dava finalmente autorização para saírem, e começavam oficialmente as férias de natal.

Nesse instante, todos os moradores da freguesia ficavam a saber que finalmente os “americanos da Base das Lajes” tinham vindo, no seu grande “bus” azul escuro, característico das Forças Armadas Americanas, trazer a oferta de natal às crianças da escola. Era o dia que todos conheciam como “…das caixinhas dos americanos”. Tudo isto acontecia na ilha Terceira e só nesta ilha, onde tinham (e têm) uma base aérea.

A magia que aquela “caixinha” continha era e será sempre inigualável. Quando a abríamos, era como se estivéssemos na verdadeira aldeia do pai natal, e das suas mãos recebêssemos tudo o que, embora simples, na altura, não tínhamos nem existia no nosso mercado. Dentro da caixa, havia lápis de cor de cera, aparadores e borrachas de cores vibrantes, jogos de pequenas dimensões, bonecas ou carrinhos e, maravilha das maravilhas, chocolates e pastilhas elásticas que preenchiam todos os espaços vazios que ainda existissem.

Com a nossa “caixinha” apertada contra o peito, não fosse perder-se alguma das preciosidades que continha, corríamos até a casa, para a mostrarmos à mãe e podermos desfrutar a plenitude daquele momento mágico.

Longe vão os tempos em que esta criança se deliciava com uma simples “caixinha”. Longe vão os tempos em que esta criança, carregada de inocência, não via mal no mundo, e achava que todas as outras crianças viviam felizes como ela. Longe vão os tempos em que esta criança não se perguntava como é possível tanto ódio e tanta falta de empatia por esse mundo fora.

Olho para o Menino Jesus, no meu presépio, e pergunto, como é possível tanta discrepância entre mundos, habitados por homens, mulheres e crianças, à nascença com os mesmos direitos mas garantias tão diferentes? Como é possível que tantos tenham tanto e outros nada, mesmo nada? Ele não me responde, e eu muito menos encontro a resposta. 

Resta-me recordar a magia da minha “caixinha” de natal, e desejar com toda a força do meu ser, que todas as crianças do mundo recebam, num qualquer momento, qualquer coisa que as faça viver uns instantes de alegria e esperança, e ainda que no seu coração haja um resto de amor, que lhes permita sentir gratidão por estarem vivos. Se isso acontecer, será sinal de que ainda há esperança num mundo melhor.

E será que há mesmo?

Votos de umas festas felizes e um ano de 2024 repleto das maiores prosperidades.

Ana Toste


Comentários

  1. Que texto maravilhoso.
    Não sabia dessas caixas, pois por essa data nem meus pais sabiam de mim.
    Hoje, vi-me também a correr ladeira abaixo com uma caixinha bem apertadinha ao peito…
    Infelizmente o mesmo não posso dizer não saber da falta de esperança e fé num mundo melhor.
    Mas quero acreditar e acredito que tempos melhores virão.
    Beijinhos
    Obrigada pela partilha!

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