Ana Toste
Oito horas da noite. Estou numa das salas do Serviço de Cardiologia do Hospital de Angra do Heroísmo, a acabar de dar o jantar ao meu pai. Deixam-me estar até para além do limite da hora de visitas. Todos os dias me permitem isso. Ouço tossir incessantemente no quarto ao lado, e porque está tudo em silêncio, percebo que alguém se dirige para lá. Sei quem tosse, porque todos os dias vou ao Hospital, àquele Serviço, duas vezes, e conheço quase todos os ocupantes dos outros quartos. Sei, portanto, que o Senhor X, que tosse no quarto ao lado, apresenta um quadro clínico grave. Sei também que, quase diariamente, é visitado por um jovem adulto, que se senta a seu lado na cama, e que, com um ar triste, dedica todo o tempo a dar atenção ao “seu doente”. Presumo que seja seu filho.
Acabo a minha tarefa e, embora relutantemente, despeço-me do meu pai e encaminho-me para a saída, com a intenção de ainda parar na sala de enfermagem, para saber se houve alterações no quadro clínico do meu doente.
Ao passar na sala onde está o Senhor X, olho para dentro, e vejo o Enfermeiro (sim é um homem), sentado na cama do doente, com a mão dele nas suas, procurando confortá-lo, já que ele evidencia dificuldade em respirar e a tosse não o deixou.
Porque sabia que eu lhe queria falar (disse-lhe quando cheguei), levanta-se e vem ao meu encontro, e antes que lhe diga alguma coisa, diz-me que está convencido que o Senhor X não passará daquela noite, e que vai telefonar ao filho, que nesse dia não veio visitá-lo, mas que quererá, com toda a certeza, estar com ele antes do desfecho final.
Esta atitude por parte daquele profissional, marcou-me para toda a vida. A imagem dele, com a mão do doente entre as suas, ficou para sempre gravada na minha memória. Quanta generosidade, quanta humanidade.
Não sei se o filho veio, não sei pormenores do que se passou, só sei que no dia seguinte, a cama do Senhor X estava vazia. No entanto, apesar da tristeza que senti, tive a firme convicção que o Senhor X, mesmo que o filho não tenha vindo, não teria estado sozinho, pois tinha com ele um outro jovem adulto, que, para além de excelente profissional, era também uma pessoa fantástica, pois só uma boa pessoa teria sido capaz de ter a atitude que eu tinha presenciado na noite anterior.
Sei exatamente a janela que correspondia ao quarto do meu pai e ao do Senhor X, e de cada vez que passo por aquele edifício, procuro a 4ª janela da ala direita do 5º andar, e relembro aquele quadro que foi, para mim, uma verdadeira lição de generosidade e compaixão. Uma verdadeira lição de vida.
Por isso, agora, e cada vez mais, quando procuro com o olhar as tais janelas dos quartos de que vos falei, parte-se-me o coração, ao ver um edifício que é um fantasma, de um outro que marcou a vida de tantas e tantas gerações. Não merece o abandono a que está sujeito. É indigno sujeitá-lo a isso. Não merece, não merece mesmo!
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