Avançar para o conteúdo principal

INTERRUPÇÃO NÃO PROGRAMADA

Dar TEMPO e receber TUDO

 

Quando o Sr. António entrou naquele dia, na Porta Solidária, trazia o sorriso de sempre. É aquele sorriso que deixa os olhos estreitinhos por mexer com o rosto todo. Pousou o antebraço sobre o balcão e inclinou-se ligeiramente para o nosso lado. A mão estava em posição de cumprimento e aproveitei a deixa agarrando-a primeiro com uma, depois com as duas mãos... "está bom, Sr. António?”. 

Outro sorriso “vai-se andando”.

A mão livre coloca um pacotinho morno nas minhas. “O que é isto?”. Dá um jeitinho à cabeça como que a dizer “abra”, sempre com um sorriso rasgado. Desenrolei uma pontinha do pacote de jornal, e o cheiro foi inconfundível “são castanhas!”. Afastou as mãos. Estava entregue. Perante o que suponho ter sido o meu ar de espanto, esclareceu dando-me um toque por baixo do queixo como se faz às crianças “são para vocês, por serem sempre tão boas para mim”. Não chorei. Não sei como, porque senti que se enchiam de água… “Obrigada, Sr. António”. E lá foi para a mesa, a fazer aquele gesto com a mão que quer dizer “não foi nada”. 

Engana-se, foi tudo.

Ao sair passou novamente no balcão para dizer “gostei muito de estar este bocadinho aqui, com vocês. Espero voltar na segunda-feira”. 

Creio que, depois de fecharmos as portas, todos os que partilharam as castanhas, que ainda estavam morninhas, sentiram o mesmo. Os sorrisos e os olhares trocados, com aquele brilho, não me deixam margem para grandes dúvidas. Comecei a ter grandes lições de vida na Porta solidária em Junho de 2017. Tinham-se passado cerca de 5 meses desde o meu primeiro fim de tarde ali. Há cinco meses que cada sexta-feira tinha outro sabor, por mais ansiosa que estivesse pelo final de semana, por mais cansada,  nada fazia desaparecer o sorriso na alma que se plantava durante a tarde, a contar o tempo para as 17h30, hora em que a porta se abria para os voluntários começarem a preparar os tabuleiros para dar sopa, sanduiches, fruta, ou o que a boa vontade tivesse levado até ao Marquês naquela semana.  Lembro-me de ter sentido, naquele dia, que já não imaginava uma sexta-feira sem a realidade crua e ao mesmo tempo mágica daquele lugar.

Maria João Drumond


Comentários

  1. Os dois euros do pacote de castanhas foram uma fortuna para o Sr. António... e se lhe foram oferecidas, deu tudo o que tinha...

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares deste blogue

A MINHA VIAGEM AO JAPÃO

Verdade, fui ao Japão. Verdade, aventurei-me a, depois de 2h30 de viagem para Lisboa, meter-me num outro avião para, durante 7h30, fazer Lisboa-Dubai, e ainda noutro para mais 9h30 até Tóquio. Ainda hoje me pergunto como me aventurei a tal, eu que me arrepio sempre que se fala em viagens de avião. Mas fi-lo e ainda bem!   O Japão nunca foi um país que me despertasse grande interesse, logo uma viagem que, não fosse a minha amiga Manuela, provavelmente não teria feito. Por diversas vezes já lhe agradeci e vou sempre agradecer-lhe ter-me ligado, naquele dia, a dizer-me “… vamos?” Mas, se nada é por acaso, é porque agora é que era a altura certa para a fazer, pois a idade já me permitiu uma plenitude que antes não alcançava. Já regressei há vários dias e ainda não “aterrei” no meu quotidiano. Continuo, a cada minuto, a visualizar imagens, paisagens, gestos e atitudes que me levam ao que, agora, considero um outro mundo. Um outro mundo em que é notório o respeito pelo outro, nomead...

A ARTE, A BELEZA E A GRATIDÃO

  Sou frequentadora assídua da Confeitaria Paulista na Maia, onde a D. Elvira e o Sr. Jorge Mendes (proprietários), fazem questão de nos receber de “braços abertos.” Tomo o meu café e pão com manteiga neste maravilhoso espaço. É um local muito familiar. Um espaço onde nos sentimos muito bem!!!  Somos bem recebidos; Bem tratados; Bem-vindos!!! Sentimo-nos em casa. A D. Elvira faz questão de nos fazer sentir únicos. Há uns dias, tive oportunidade de ver uma autêntica obra de arte saída das mãos do proprietário da Confeitaria Paulista. Trata-se da peça cuja fotografia está a ilustrar esta publicação. Ao ter acesso ao dito quadro, acreditem, que senti ARTE, que senti BELEZA e depois de saber a história que o envolve, senti que ali, existia GRATIDÃO.  Ora o Sr. Jorge Mendes, decidiu pôr mãos à obra e fazer este maravilhoso trabalho em pão. Sim, trata-se de pão e não outro material qualquer. Explicou-me as múltiplas e morosas voltas que este trabalho dá, até chegar ao resultado...

A LOUCURA DO MUNDO

  Tinha decidido que hoje escreveria de novo sobre a minha viagem ao Japão, e que vos contaria algumas peripécias dignas de registo humorístico, daquelas que sempre me acontecem e me divertem ao ponto de querer partilhar com outros, e porque me faz feliz. Faz-me feliz fazer aparecer um sorriso no rosto de quem lê os meus textos, um sorriso que muitas vezes anda escondido e tarda em aparecer. No entanto, nem sempre isso é possível, e hoje não pode ser assim. Hoje tenho de partilhar convosco a minha tristeza, a minha revolta, a minha frustração. Desculpem-me mas terá de ser assim. Logo pela manhã, como habitualmente, abri o rádio para me atualizar acerca do que se passa no nosso país e para além dele, e o que fui ouvindo fez-me decidir que não concluiria o meu texto nos termos em que tinha pensado. Não tinha esse direito perante o que estava a ouvir. Se o fizesse era como se também estivesse a assobiar para o lado perante o horror que me descreviam. Apesar de ser uma peça insignifica...